Monday, April 09, 2007

"O amor comeu minha paz..."




O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha
certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões
de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros
e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus
sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a
cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu
minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes
mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros
de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam
se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas,
tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus
utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de
água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das
quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos
que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a
escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos
olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos
cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando
pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos
que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de
automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues,
aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde
ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas
barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro
de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu
desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os
minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão
asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as
futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e
meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.



(João Cabral de Melo Neto)